Excertos da introdução de Maria Helena da Rocha Pereira, à sua tradução da "República"
Uma primeira característica salta aos olhos de quem abrir este tratado: a sua forma de diálogo, não dramaticamente expressa, como no Górgias, Ménon ou Fedro, mas sob a aparência de uma narrativa feita por Sócrates a um auditório anônimo1 , ou seja, exactamente o mesmo processo adoptado no Protágoras, Cármides e Lísis 2 .
O facto tem sido explorado - era inevitável - como base para estabelecer a tão discutida cronologia relativa da obra de Platão, tanto mais que no Teeteto (143b-c) o processo é explicitamente declarado incômodo e, como tal, abandonado. Mas o passo em questão não é de molde a excluir a possibilidade de a forma narrativa ter sido retomada posteriormente a esse diálogo, e, de um modo geral, a crítica moderna tende a desvalorizar este critério de datação 3 .
Permanece certa, porém, a vantagem, proporcionada pela narrativa, de permitir uma caracterização mais acentuada das figuras e de reconstituir com mais relevo o ambiente em que se movimentam 4 . Basta atentar em certos pormenores da República para obtermos uma brilhante confirmação do facto: logo na entrada, o escravo de Polemarco, que chega a correr ao pé de Sócrates e lhe agarra o manto por detrás, a fim de lhe pedir, da parte do amo, que se não retire já; e o voltar do mestre, para saber de quem se trata ([[Republica-I|I. 327b]]); depois a inesquecível agitação de Trasímaco, que não pode mais dominar a indignação que lhe causa o método de investigação seguido por Sócrates (I. 336b); o suor e o rubor do Sofista, ao sentir-se derrotado (I. 350c-d); mais adiante, no começo do Livro V, o estender da mão de Polemarco, que estava sentado longe de Adimanto e lhe puxa pela veste, inclinando-se para a frente, para lhe segredar umas palavras, de que os circunstantes só ouvem a resposta - a resposta que vai alterar o curso do diálogo (V. 449b-c).
- 1Noutros diálogos, o interlocutor é nomeado. Assim, e para só citar o mais conhecido, na abertura do Fédon, é o discípulo de Sócrates com este nome que conta a Equécrates a conversa final e os últimos momentos do Mestre.
A forma de diálogo, em si, não é, como se sabe, novidade platônica, pois outros discípulos de Sócrates o usaram. Mas só Platão elevou o diálogo filosófico a gênero literário. - 2Além destes, são também diálogos narrados o Eutidemo, o Fédon (citado na nota anterior), o banquete e o Parménides. A relação pormenorizada das variantes usadas para os introduzir pode ver-se em Paul Shorey, What Plato Said, pp. 63-64.
- 3Estamos longe, portanto, das posições extremas assumidas no séc. XIX, como a de Schöne (1862), que considerava os diálogos narrados como os últimos, ou como a de Teichmüller (1879), que sustentava a tese oposta. No entanto, um especialista como Holger Thesleff (Studies in tbe Styles of Plato, Helsinki, 1967, p. 19) continua a entender que as diferenças entre as duas modalidades são notáveis e incluem modos de composição e estilo que parecem tornar difícil de aceitar a passagem de uma para outra.
[O mesmo especialista, nos seus recentes Studies in Platonic Chronology, Helsinki, defende a teoria de que essas diferenças se reflectem na aplicabilidade do critério estilométrico como índice de datação.] - 4Cf., entre outros, P. Shorey, What Plato Said, p. 64.
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